30.1.07

“Estava chovendo e ela pensava” (conto)

Estava chovendo e ela pensava, Que estava se sentindo bem, pois bem. Talvez; mas bastou aparecer o sujeito para. Então não sei o que ela pensou. Mas, e isso era certeza.
Quando chovia ela punha a mão para fora da janela e sentia a água fria, e não gostava da sensação mas isso que era bom. Gostava de ver o céu pesado morrendo sobre a cidade, quando devia fazer dia claro. A beleza verdadeira é a ironia. E a verdade é que debaixo da chuva estão todos sozinhos.
O sujeito eu não sei o que fazia quando chovia, mas que agora tinha vindo aqui, pra vê-la? Não sei, mas a está vendo. A reconhece, de lá do térreo? Ele veste preto, e o preto está molhado e ainda mais preto na chuva, e seu cabelo é preto e escorre e gruda no seu rosto, e seus olhos são pretos e profundos e refletem o dia cinza.
Ela o reconhece, e não me diz quem é. Por que ele veio?
Ele olha pra cima com seus olhos profundos e pretos, e vendo-o quem não teria vontade de se jogar dessa janela do nono andar? Para cair diante dele. Ele é tão branco e coberto de preto, parece que nem tem sangue.
Ela pega sobre o móvel um cigarro e o acende. Segura, sem fumar. E ela pensava, Que estava muito, muito bem, pois não? Eu olho pra ela e pra ele. Ele tem frio, ela olha pra baixo.
Ela se movimenta, levanta-se e senta no parapeito da janela. Agora o lado esquerdo dela se molha... seu cabelo castanho escurece, ele já está todo molhado e olha pra ela com seus olhos pretos tão pretos. Fazes-me falta, queria ele dizer? E ela queria dizer que Falta me fazes?
Talvez atravessando a rua ele podia ter sido atropelado por aquele ford que ele esperou passar, e eu só o teria visto depois de ouvir os sons típicos de uma batida. Ela pensou. Mas então ela veria que ele tem sangue, sim, por dentro do preto e do branco. Ainda olhando pra ele, ela dá um trago no cigarro e solta a fumaça lentamente. Ele está lá embaixo, parado, as pernas ligeiramente abertas, os braços deitados no lado do corpo, seu lado direito e seu lado esquerdo exatamente simétricos, e a chuva escorre por seus cabelos pretos e por suas roupas pretas. Em suas mãos, luvas pretas, e faz frio e chove.
Por que é que sempre nessas horas chove? Porque ela se sente muito bem, pois sim. Mesmo vendo-o ela sente-se tão bem porque chove e todos estão sozinhos nesse dia que devia ser tão claro. E ela sente prazer em vê-lo molhado lá no térreo?
O porteiro deve estar pensando se aquele sujeito quer entrar, mas ele não demonstra qualquer intenção. Ela espera que ele peça para entrar para poder entrar com a desculpa de atender o interfone e deixá-lo entrar, mas ele não cessa de olhar nos olhos dela.
Se pelo menos ela pudesse saber o que quer dizer com esses olhos pretos e esses cabelos pretos escorrendo água da chuva. E a roupa preta cola-se ao corpo e sei que ele tem frio. Mas os olhos pretos recusam-se a dizer coisa alguma.
Amavam-se, os dois, ou teriam se amado ou se amariam algum dia?
Será que ele se mexeu?
E a chuva está diminuindo um pouco, mas agora já estão ambos molhados, ele por inteiro e ela por metade. Lá fora está tudo cinzento, mas cá dentro há cor e calor. Ela fuma.
Ele leva a mão ao rosto e esfrega para tirar um pouco da água. Afasta o cabelo do rosto, o cabelo preto molhado. E ela, que sabia tudo sobre ele. Outro dia apenas estava pensando que nunca mais o veria, enquanto bebia café num dia frio e chuvoso. E ele, nesse outro dia, estaria também sob a chuva com sua roupa preta encharcada?
Se ele simplesmente fosse embora agora, o que ela sentiria seria, Talvez alívio, Talvez culpa. Ela sempre sente culpa, e ele sempre sabe fazê-la sentir culpa.
Ele, no entanto, não sente culpa jamais. E por isso está na chuva olhando para cima para ela com seus olhos pretos e profundos e pretos; e grandes. Cigarro fogo fumaça, chuva cabelos pele, o dia cinzento morrendo liquidamente e eu não sei que linhas finas e brilhantes como teias de aranha unem essas três forças. E aquilo é uma lágrima ou uma gota de chuva? Haverá motivo para alguém chorar?
Há ainda a bela música dos carros passando pela rua molhada e pelo ar molhado. Os carros molhados, atrás dele na rua, no térreo, na calçada. E todos sabem que nada mais acontecerá hoje, que ele não subirá e ela não descerá, cada um voltará para sua vida pois debaixo de chuva estamos todos sós, e é essa a maior intimidade: entre nós e a chuva. O mais importante da chuva é os sons que ela produz na cidade, o som dela batendo no chão, nas janelas, o som dos carros e o som de nós mesmos em silêncio. E a cor forte que os carros adquirem debaixo da chuva.
E poderia o tempo ter passado,
E os séculos morrido e as pessoas,
E tudo o mais ruído ali em torno,
Sobrando só os dois e aquele prédio
e aquela chuva?
E poderia a roupa preta dele ter crescido e coberto todo o mundo?

27.1.07

Quando estamos sós - o tempo passa tão lento, mas depois é como se fosse nada.

26.1.07

inspirado pelo querido professor Márcio Tadeu

Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,

And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I—
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.

Robert Frost

há aquela velha imagem do caminho que se bifurca como símbolo da escolha. Me pergunto: e se mais à frente os dois caminhos (dentre os quais só escolhemos um) cruzam-se, criando nova escolha que anula a primeira? E nem sabemos disso, pois que não sabemos que os caminhos que vemos à nossa frente são produtos daquela bifurcação que já encontráramos...

19.1.07

Eternidade

Me incomoda que as pessoas sempre falem, sobre as coisas ruins, que sejam passageiras, enquanto as coisas boas merecem status de longevas. De modo que é até uma contradição, pois que se está falando de duas possibilidades opostas de existência: a de que tudo passa e a de que tudo fica. Conforme os eventos mudam, buscamos a solução que nos assegure algum sentido resiliente. Podem me dizer que ambas as visões têm sua verdade, e concordarei – mas isso significará outorgar-lhes valor de realidade sempre e conjuntamente, e não escolher como melhor nos aprouver. Afinal, quando se fala de verdade não se fala de justiça.
Alardeamos a impermanência para deixarmos escorrer a água por nossas costas, limpando-as do peso da resistência. Se as coisas duram, também dura toda essa merda que estamos vivendo neste instante. Se tudo passa, tudo sempre passará; poderemos ganhar alguma força para ficar novamente de pé e dar nossos sempre patéticos pulos na tentativa de voar – e não importa que não consigamos, pois o futuro é tão efêmero quanto o passado e o presente. Tanto que já nem parece futuro, parece até que já foi... E podemos agora nos abandonar para algum tipo de carpe diem que nos faça esquecer que para viver precisamos realizar toda essa operação translógica.
Mas já se disse ser insustentável essa leveza do ser, e tivemos que acreditar que as coisas ficam conosco (ora, me parece que toda a psicanálise serviu pra justamente isso...): em nossa memória – que já não se limita a uma fração de cérebro funcionando como armazém, mas se expandiu com as teorias holísticas e tudo o mais para todo o nosso corpo, toda a nossa consciência – guardamos tudo, absolutamente tudo. Por isso podemos falar que jamais deixaremos de amar uma mãe que morreu há mais de meio século, ou que uma experiência sublime de nossa infância não será esquecida, e que mesmo aquilo que esquecemos estará sempre conosco. Atrevemos-nos a afirmar que é isso que nós somos.
Ficando, tudo passa. Morrendo, tudo se eterniza.
Eu creio que o homem é imortal.
Então por favor não me venha alguém dizer que não haverá a nossa morte, pois que eu sei que as coisas podem acabar e acabam, e sequer esperam pela morte minha para terem fim. E não me venham dizer que vai passar, pois já entendi que não passará nunca, e que as cicatrizes de verdade jamais cicatrizam e jamais param de doer, não importa o que se use para cobri-las.
Há o fato de ser impossível viver com essas duas coisas na cabeça ao mesmo tempo. Acho que levaria à loucura. Mas quem encontrou uma verdade também não é capaz de abandoná-la em troca de capacidade vivencial. E voltamos ao começo, e voltamos a não saber o que fazer – pois nunca sabemos o que fazer. E isso é horrível, mas já estou tão acostumado que dá até pra ver aí um pouquinho de sublime.

14.1.07

Diálogos

Como eu digo, que de melhor há se não, sentados em torno de uma mesa (de preferência durante ou após uma boa refeição), pessoas que se gostam conversarem sobre qualquer assunto? – e não me venham com restrições a política e religião, e nem mesmo futebol. Fazer dessa mesa um campo livre de tiros e granadas e cruzes-vermelhas com livre-passe entre os atingidos e atiradores. Abrangir estética e as fronteiras africanas, língua e animais domésticos, livros e vezes em que a Lorena confundiu um cachorro com o próprio namorado.
Os gregos escreviam em diálogos. Os indianos também, para os que estão cansados de tudo reportar aos gregos. O diálogo está na base de tudo o que eu mais amo: literatura, teatro, filosofia, das relações com os outros seres humanos. Enquanto houver homens, haverá diálogo. Não existe não ter assunto. Não me digam que nada há para fazer, não venham procurar desculpas para encontrar com seus amigos, pois sempre se pode ir até a esquina, pedir umas cervejas e abrir a boca, articular a língua, descongelar os lábios.
Me disseram que Barthes afirmou que não existe o que chamamos de diálogo, apenas o reconhecimento de afetos pré-existentes. E não é isso diálogo? E belo diálogo. Serão às vezes nossos afetos co-afetos, às vezes desafetos – e então a conversa pode esquentar e pessoas podem se exaltar, mas nisso também encontro prazer imenso. Porque no verdadeiro diálogo há paixão em discordar. Mostrem-me alguém que não gosta de discutir e eu lhes mostrarei um morto.
E mesmo quando falamos merda, quando falamos demais, quando falamos errado, quando falamos ofensas. Não me interpretem mal – o silêncio é de ouro. Mas se o ouro fosse muito comum, não teria valor. O que já não acontece com outras coisas – homens, amores, prazeres, diálogos.

9.1.07

uma coisa com a qual eu provavelmente jamais me conformarei é o fato de a editora "Livros do Brasil" ser de Portugal.

6.1.07

Cósmico

Este é um universo no qual por diversos meios é possível conter o afastamento das galáxias, estas sempre extremamente influenciáveis pelas questões mais levianas que se pode imaginar. Não é de se espantar que em determinado momento uma delas, próxima à boca do espaço, de um só pulo alcance a prateleira do alto apenas para poder rabiscar seus desenhos em meio àquela poeira toda que ninguém nunca se deu ao trabalho de limpar. Meticulosamente utilizando a ponta das unhas para fazer os mínimos e indispensáveis detalhes, põe-se a gritar e chama toda a gama de corpos cósmicos para a sala, com o único intuito de utilizá-los como moldura de sua arte, ou adubo para as plantas, convalescentes do inverno.
Ou mesmo quando a descoberta de um plático bolha une todas as partículas fundamentais na divertida tarefa de estourar bolhas, uma a uma. Fica claro que caminham todas em direção ao centro (onde ainda há bolhas por estourar), nitidamente modificando os campos gravitacionais e desnudando outras forças, que vivem no chamado underground e não tem qualquer compromisso com o status quo do universo, vejam só.

5.1.07

"A tree is a tree, and growing is to grow"

A gente fala em crescer e pensa que é o mesmo que amadurecer ou envelhecer, mas não é, afinal crescer fala primeiro de quantidade e depois de qualidade.
Quando eu era pequeno eu assisti no mundo de beakman que a gente podia se auto-induzir a sonhar com certas coisas se antes de dormir ficássemos pensando fixamente nelas. Foi aí que eu aprendi a imaginar. Até então, na cama, eu ficava escondido debaixo das cobertas porque tinha medo que ladrões ou a vilã do capitão planeta viessem me buscar agora que estava tudo escuro e minha mãe dormia, mas a partir daí a noite começou a ser a melhor hora do dia. Eu fantasiava grandes épicos, dramas e melodramas, comédias-pastelão, novelas, desenhos animados dos quais eu era o personagem principal, e que duravam por até meses, uma só história me acompanhava, e chegava a entrar na minha vida do dia – e foi aí que eu aprendi a devanear. E quem precisava de mais, de qualquer jeito, se a vida podia ser um teatro e eu ao mesmo tempo ator, autor, diretor e platéia? E foi sonhando que eu intuí que existia alguma coisa escondida e brilhante, alguma arca do tesouro, alguma fonte de água pura de cuja água quem bebesse amarguras não mais teria. Aí eu descobri que se eu contraísse meus músculos da face de modo correto, formando um sorriso não muito grande e quase todo interno (de um jeito que é até difícil descrever, mas que eu me lembro bem até hoje como se faz e ao qual eu sempre acabo voltando), eu poderia até sentir um arrepio bom, um cheiro dessa felicidade.
Mas isso quando eu era criança, e hoje eu já tenho dezoito anos – e meio. E continuo sonhador, certo. Mas com o tempo as histórias pensadas foram diminuindo de duração, e as histórias que duravam meses passaram a durar semanas, daí passei a precisar inventar uma história por semana, daí duas, daí uma história por noite porque a de ontem já era velha e perdera toda a cor, até que eu não consegui mais criar nem uma história inteira por noite. Começava e abandonava, começava e acabava assim. Foi mais ou menos ao mesmo tempo (e não ouso adivinhar a relação entre as duas coisas) que a infelicidade começou a entrar nas minhas histórias, e a água que me trazia a suspensão de todas as dores depois de um tempo tinha gosto de sangue ou terra ou fel. Hoje meus sonhos são cacos de vidro brilhante chovendo sobre uma cidade adormecida.
Então acho que isso é que é crescer. É aumentar em quantidade de realidade, até que toda a beleza seja empurrada pra fora por não caber mais.