29.10.05

Madrigal hesitante

Queria
me desculpar
por não saber
fazer poesia.
Queria dizer
coisas que só se
diz em poesia –
porque queria
dizer as coisas
que não têm
por obrigação
aquela lógica,
a velha lógica.
Queria dizer
coisas que só se
diz em poesia –
porque queria
dizer aquilo
que eu vejo
quando olho
para você.
Mas preciso
me desculpar
porque não sei
fazer poesia.
Às vezes penso
que a poesia
só é feita por
quem nasceu
pra fazê-la ou
por quem é
de algum jeito
diferente
de mim.
Às vezes penso
que a poesia
é de todos
como a prosa,
mas aí
penso
que a poesia
tem algo de
espiritual (e
não é
nenhuma
novidade
que o meu lado
espiritual
não é muito
desenvolvido).
Talvez exista
mesmo,
de verdade,
um Deus, mas só
pra quem sabe
fazer poesia.
Talvez a
prosa não
tenha alma.

Não acredito
que consiga
fazer um
poema que
consiga dizer
o que eu preciso
dizer. Mas
mesmo em
condições
adversas, eu
estou aqui
escrevendo
pra você.
Porque você
precisa ouvir
ouvir algumas
coisas. Não.
Eu preciso
que você
ouça – ou
precise ouvir –
algumas coisas.
Mas acho
que as coisas
que você
precisa ouvir
não são as
mesmas que eu
preciso que
você ouça ou
precise ouvir.
Queria poder
(além de,
me desculpe,
fazer poesia)
falar as coisas
que você precisa
ouvir. Mas
você é tão
sem ouvidos
pelo menos pra mim.
Você é,
acho,
talvez seja
bom demais
pra mim.
Acho que eu
não mereço
você, seus
ouvidos.
Mas merecer
não me parece
importante
não num
mundo
que não
se importa
com o
merecer.
Porque eu
mereço você,
porque eu
(eu mereço
você porque
eu) só sei
gostar
de você.
Só sei gostar
de você, e
não sei
fazer poesia.
Mas acho
que fosse
um
negócio
eu prometia
aprender
a fazer uma
poesia, se
em troca,
eu pudesse
ter você.

Me desculpe
pelo poema
assim tão
hesitante.
Tão feio.
mas eu não
sei fazer poesia.
E tenho medo
de fazer
poesia
pra você
e falar alguma
coisa
que não seja
o que eu
preciso que você ouça.
Então eu
falo assim, em
trancos,
então me
desculpe.

Queria fazer
um poema me
desculpando e
também que
dissesse aquilo
que eu preciso
falar pra você.
Que eu te adoro.
Que eu estou
completamente
apaixonado
por você.
Que na minha
vida toda
você é a única
coisa que
faz sentido, que
vale a pena, que
me motiva, que
eu quero, que
eu gosto, que
eu amo, que
me faz sentir
o que quer que seja.
Que você é
a coisa mais
linda
que eu
já vi.
Que você
merece
que o
mundo
se abra
pra você, que nem
eu abro meu
corpo
pra você
entrar por onde
quiser.
(abro meus
braços,
minhas pernas, meus
olhos, minha boca,
minhas narinas,
minha virgindade,
minha dignidade,
meu umbigo,
meu...
... não sei se falo
ânus ou
cu)

Se ao menos eu
soubesse
fazer alguns
versos longos
sem
hesitar,
talvez eu
pudesse fazer
pra você um
poema épico.
Você eu
cantaria
só pra colocar
no mesmo papel
seu nome
e minha palavra.

Outro dia você
me abraçou.
Naquele
abraço, eu –
inocente e
clichê –
senti o
mundo me abraçar.
Outro dia
quis abraçar
seu corpo
perfeito
mas não
te tinha.
E nem tinha
qualquer outro
ser humano pra
abraçar no seu lugar.
Mas não sei
beijar a parede.
Mas não
sei abraçar
a mim mesmo.
Olhei pro meu
travesseiro e
vi nele
a coisa mais
quente
que havia por perto.
Meu travesseiro
acho que
não respondeu.
E eu
queria que fosse
você.

23.10.05

Amar

Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

1.10.05

Vermelho

Noel Rosa já
pergunta o povo
com maldade
- Onde está a honestidade
?
Onde está a honestidade

Faminto o povo
Que nem povo
Como pouco
Ou Não come
Não é gente
Como a gente que come
E nós que comemos feito porcos
(que quase somos)
e vacas.
(Que definitivamente somos.)
Como aquelas de São Paulo
de silicone, ossos e carne
e sangue – embora pouco
escasso
Que rareia à medida que rarei a inteligência da espécie paulistana
de vacas e porcos
E, quem sabe,
Macacos
No Leblon
(ou em frente à Farmacia PUERTO MADERO
Que realiza obras sociales
E aceita tarjetas debito – credito
Nos telefones 43450001 e 43450002)
e no Brooklin
Macacos porcos e vacas
que receberiam cusparadas
De sem-terras, do Movimento dos Sem-Terra
Se não fossem
Pequenos medrosos
que se fecham em tocas, casas blindadas
E carros também blindados
Com touros e armas e olhos
todos comprados com dinheiro
limpo
com cheiro de cândida e esfregados para sair o cheiro
de sexo dos moleques de rua
que, sem dinheiro, comem-se uns aos outros
porque as meninas da mesma rua
não podem perder tempo com quem não tem como pagar.
Até que chega o momento em que,
por falta de feijão
ou angústia existencial
ou loucura
ou desistência
comem-se uns aos outros arrancando pedaços
e chupando o sangue que ainda resta
(e que tem gosto estranho.)
Um dia os moleques enjoarão e comerão
As vacas, porcos e macacos;
Agora sim, com gosto.
Surpresa: gosto dos próprios moleques.

Mas só se os moleques tiverem dentes.
Porque quem não tem dente, não mastiga
Mesmo que faça força; se força,
Machuca a gengiva
Que já não é lá muito forte
Ou vermelha
Ou quente
A gente pensa com a gengiva. A gente pensa por causa da gengiva.
E a barriga
E o clitóris
E os olhos
E a unha.
Se a unha dói, a gente não pensa
A gente precisa do outro pra pensar pra gente
Mas só quando a unha do outro não dói.
(Se dói, não se pensa)
No entanto, não serve sem doer a unha do outro
Que pensa por você
Fazendo favor,
Ou cobrando os olhos da cara
ou se é Satanás, a alma
temperada com sangue e suor.
De qualquer forma, é um outro que pensa.
Mas só quando a unha não dói.
E dessa forma, pensa um pensamento sem dor de unha dolorida.
Porque não sabe o que é a dor na unha que não é dele.
Pode ter quantas dores tenha.
Mas não tem a dor na unha
Que você tem
Pela qual só; você chora
verdadeiramente.

Há unhas que doem
Freqüentemente
Quando não
Constantemente.

Fede.
De que adianta
Desodorante
Perfume
Incenso
Ou qualquer outra resina aromática
Extraída de uma qualquer árvore terebintácea
Ou saquinhos de cheiros sortidos
Se fede?
E continua fedendo
Acabou de tomar banho.
A alma fede.
A alma fedida.
Se se constata o fedor é excessivo,
O próprio inferno.
Cheiro de merda
Enxofre
Amoníaco
E aquelas ruas onde os bêbados vomitam
enquanto choram dores de amor
E se imaginam ditadores supremos de um Estado Uno
(bem menos preocupante,
por sinal,
que bêbados ditem,
se se pensar em ditaduras
da América Latíndia
num Romance Pré-histórico)

Se não há igualdade suprema
Que tenha dado certo
É pelo medo
E preguiça.
Ser responsável
Dá trabalho
Demais para porcos e vacas
Macacos menos – não param quietos
Só têm o medo
E fingem que não vêem.
Muito mais fácil
Buscar um herói
Ou alguns.
Finge-se que tudo está certo.
(Os macaquinhos fazem vista grossa:
proletários ou escravos são armazenados na periferia de qualquer grande cidade
Cidade ou Império
Império ou Ideologia)

Um grande armazém de almas.
Almas que trabalham duro
Apesar do suor e da fuligem
Não têm cheiro de nada.
Porque não são absolutamente nada.
Apenas uns poucos pobres pretos perdidos
Pretos de melanina
Ou preto da sujeira das máquinas.
Máquinas que valem o equivalente a mil pretos
Sendo que os pobres valem cinco terços de macaquinhos.
As almas pretas
Que cantam dançam
Fazem festa
Arte
Porque não têm a menor preocupação com os macaquinhos
Porque estão com fome, tesão e dor
Trabalham, comem o que não tem pra comer
Transam e dançam para esquecer a dor.

Não que os macacos não transem ou dancem
Mas perdem muito tempo duplipensando.

Duplipensar é um ato de covardia
E alienação.
Chega-se até a triplipensar,
Quadriplipensar.

Pensar como se queira
- já que não se quer muito, mesmo.

Enquanto uma cidade de São Paulo
Adormece e amanhece
E convalesce e desengana
Vermelha
Oxidada
Com alguns milhões de formiguinhas
Correndo de um lado para o outro
Com pastas
Mochilas
E bolsas cor-de-rosa
Por entre as árvores de metal
Tão rápido
Tudo veloz
Que a vida não se percebe
A vida não percebe
Assim é mais confortável
Não é mesmo

Um momento o direito inalienável de viver
Mesmo sujo
Indigno

Vai-se.