14.8.04

Prá Não Dizer Que Eu Não Falei Do Doce de Leite

Gostar.

De uma pessoa.

Não lembro mais como é possível.

E não digo gostar gostar, gostar do jeito que falamos descompromissadamente mas sabendo que é um pouquinho compromissadamente, pois sim.

Digo gostar.

Faz muito tempo que eu não gosto de ninguém. O gostar é um sofrer horrível, dói como a navalha. Mas o não gostar é nauseante, é inagüentável. Colchetes: essa é a palavra mais idiota que existe; nada é inagüentável, já que temos que agüentar e ponto, não importa se podemos ou não. É desumano. É frio. É seco. Seco porque molhado, mas em regiões diferentes - prova de que a osmose é uma babaquice de físicos.
Não consigo gostar. Claro que eu consigo gostar no sentido imediato e superficial, já que esse gostar é simplesmente fato = feito. Me sinto horrível, sinto que não mereço porra nenhuma, que mereço ser pisado, mijado, espancado, que a coisa mais certa a se fazer seria atirar em mim, um tiro de misericórdia, de alguém que diz Pobre Ele, Não Sabe Mais Gostar, Verde Verde Ele, e eu agradeço com um beijo na boca do atirador, que jamais fecha os olhos, mas olha no meio da minha testa e diz Tá Bom Aqui, levanta a voz no final pra mostrar que é uma pergunta, mas fica artificial, mesmo assim eu respondo que sim, sim, onde você quiser, e Você é o mesmo você do último post. Ele põe o dedo médio na boca, cobre-o de saliva e molha o ponto onde vai atirar.
O ser humano procura afeição para tentar preencher o vazio que o faz ser humano. Eu não me afeiciono. Como posso ser humano? Desculpe você, desculpe ela, mas não afeiciono, não gosto. Posso gostar de você como gosto de chocolate ou de ficar debaixo do cobertor numa noite fria. Mas não consigo gostar de você como você gosta de mim. Estou estéril. O tiro foram três: na minha testa, na minha boca, no meu peito, no meu sexo. Sim, três, mesmo que em quatro lugares. Cada lugar o atirador molhou com sua saliva. Ele tem cabelo cor de areia e olhos verdes, roupa bege, mas não tenho certeza de quem é. Espero que seja eu.
Se não sou humano, não sou livre. Mas sou livre justamente por não gostar. Terrivelmente livre, mais do que a maioria das pessoas. Todas? Tudo. Meu vazio é incobrível, inescondível, definitivo: preto dos desenhos de Doré, das pinturas de Redon, aranha sorridente, oposto às cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores. Não entendo como eu posso ser livre e não conseguir gostar, parece um paradoxo, é o maior deles, mas o amor é só paradoxo. Talvez isso seja algo do Amor. Cuja face eu esqueci, lembro apenas do chulé do Amor, que eu costumava inalar como uma droga alucinógena, como um ritual indígena esverdeado, como uma lagarta sobre um cogumelo. Coma-me.
Beba-me, molhado.
Sêm o gostár, páro na travessía do sertâo. O sertão é do tamanho do mundo. Viver é muito perigoso. Mas e se eu não vivo? Não 'travesso. Afinal, não gosto. Desdiadorim. Fim.

Aqui a vida acabada.

Palavrão.

Centopéia.

Gonorréia.

Azerbaijão.

Militar.

Bandeira.

Jumento.

Vitória.

Meleca.

11:57.

Aqui a história acaba.

Desumano. E, pela primeira vez, por mérito próprio. Não foi a sociedade que me desumanizou, não foi o Capitalismo, não foi o Liberalismo, não foi o Comunismo, não foi o Fascismo. Fui eu. Não foram cronópios, famas, esperanças. Não foi o presidente dos Estados Unidos da América. Não foi a Guerra no Iraque. Eu fiz tudo sozinho. Enfiei a cara na lama. Comi ração de cavalo. Dormi com um centauro. Mordi o lombo de uma zebra. Balancei sobre um pé de milho. Comi terra ao lado de uma minhoca morta. Dormi com um centauro. A grama que um dia me acolheu enquanto eu ouvia música agora me recusa. O orvalho me imagina como impermeável. A terra não sabe mais me sujar. A substância espaço não mais me sustenta, concreta ou astratamente. A luz da lua vai contra as suas próprias leis para não me banhar. As estrelas esquecem de piscar. Olho pela janela. A torre continua acendendo, amarelo, verde, azul claro, azul escuro, roxo, violeta, lilás, rosa, -bebê, branco, branco. Explode, mas só pra mim. Dormi com um centauro. Balancei sobre um pé de milho.
Dormi com um centauro.

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