27.7.04

Sidarta

Um ancião, encurvado, não consegue andar, se apoiando num bastão.
 
Um homem agoniza em terríveis dores devido a uma doença interna.
 
Um cadáver é envolvido num sudário de linho branco.
 
Impermanência.
 
Não despertamos... Hoje eu fui ao Hospital das Clínicas tomar vacina contra o tétano. Desci no metrô clínicas e andei até o prédio do ambulatório. A minha primeira visão foi de um grupo de pessoas em frente ao posto da polícia militar que fica do lado da estação do metrô. Uma médica agradecida. Um policial. Um homem pequeno, magro, velho, cujos olhos estavam vermelhos e cheios de sangue quente, um sorriso dolorido. Um outro indivíduo coberto de bandagens (um olho escondido por elas), tantas que não sei se era homem ou mulher.
 
Andei bastante até o prédio amarelo, imaginando quantas das pessoas que passavam por mim estavam doentes. Quantas morreriam logo? Quantas não morreriam, atingindo a tão sonhada imortalidade?
 
Fila enorme, pegue sua senha, eu não preciso, vou só entrar na sala do centro de imunizações e encontrar minha mamãezinha que vai arranjar tudo pra que seja bem fácil ficar com tudo em dia. Afinal, meu rosto não está amarelo, não pareço que vou desmaiar a qualquer momento. Ele, sim. Acho que vi deus em algum lugar, com uma pedra no rim ou uma artéria entupida. deus com tênia, bicho de pé, deus com diarréia, malária, febre amarela, deus com alergias, deus com o olho cheio de sangue quente.
 
Não desperto. Abuda, inbuda, desbuda. deus morre na sala ao lado.
 
deus morre na sala ao lado, não chegou sua vez, morre ainda na fila com a senha na mão, morre sem poder pagar tratamento numa clínica particular, enquanto eu reclamo que não tem joguinhos no computador.
 
deus morre na sala ao lado, e ninguém percebe. Uma mulher, que estava à sua frente na fila, fecha seus olhos cheios de sangue quente e logo olha para a frente da fila, esperançosa de que algum dia ela ande. Um rapaz, que estava atrás de deus, empurrou-o para o lado para poder pegar seu lugar na fila. Um garoto de três anos brinca com o nariz esfriante de deus enquanto sua mãe reclama silenciosamente.
 
deus morre na sala ao lado e fica apodrecendo lá por semanas, meses.
 
deus morre na sala ao lado e deixa o mundo abandonado à própria sorte. O Demónio vai conferir, sai de seus infernos e vai ao Hospital das Clínicas, encontra deus e ri, mas pega alguma doença tropical de outra pessoa da fila e fica cansado, fica cansado e senta para descansar, morre logo mais.
 
deus morre na sala ao lado, sobre ele morre o Demónio. Nietzsche, já morto desde 24 de agosto de 1900, não vem conferir, tão míope que está, mas coça o bigode e ri, finalmente certo.
 
deus morre na sala ao lado, sobre ele morre o Demónio, Nietzsche já estava morto. Eu vou conferir. Imediatamente, as portas do ambulatório abrem-se, trinta enfermeiros vestidos de dourado tocam trombetas. Eu entro, as portas do paraíso fecham-se atrás de mim. Um corredor imenso, não vejo o fim. Esteira rolante, não preciso andar, mas ando para ir mais rápido. Não corro, com medo de cair. Chego ao fim, outra porta abre-se.
 
deus morre na sala ao lado, sobre ele morre o Demónio, Nietzsche já estava morto, eu fui conferir e entrei no submundo. Há um grande pedestal, olho pra cima e uma luz verde me cega. Meus olhos se acostumam e vejo, coberto de esmeraldas e ouro, anjos voando sobre sua cabeça, Sigmund Freud, bastante mais barbudo do que você lembrava, ocupando o lugar de deus.
 
deus morre na sala ao lado, sobre ele morre o Demónio, Nietzsche já estava morto, eu fui conferir e entrei no submundo, Freud controla nossos destinos. Eu mato Freud e volto pra casa de metrô, lambendo a faca coberta de sangue amarelo. Cochilo. Acordo. Leio Grande Sertão: Veredas. Preciso acabar ainda nas férias. Questão de honra. A faca sumiu. Excalibur. Alguém ocupa o lugar de deus. Deveria ser eu, eu o matei. Não sou eu. Hipócrates.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home