12.8.04

Manchas

Não quero vir aqui, como das outras vezes, falar apenas palavras. Palavras, já as disse muitas, e dentre estas poucas foram carregadas de significado. Mas é realmente difícil falar sem falar de nada. Quero falar de alguma coisa, talvez alguma coisa grande, talvez algum detalhe importante. Mas não falar sobre nada. É que o nada é lugar comum, é parte, é sangue, é resto de todos os discursos anteriores. Quero falar pelo menos um algo que nenhum ainda tenha dito. Mas isso também não tem nenhuma importância.
Aula de artes. A professora examina os desenhos com cuidado, e adverte: você têm muita facilidade para desenhar. Tomem cuidado com isso, esse é o maior perigo para quem faz desenho de observação, pois todas as formas já estão em sua mente, e por isso não pode ver a imagem de agora.
Nossa visão do mundo certamente não é igual ao mundo de verdade. Estamos acorrentados no fundo da caverna. E estar acorrentado dói, dói sim. Nós ficamos seguros, sim, seguros, mas dói, machuca, as correntes marcando a pele, cada membro apodrecendo, lentamente. Nossos braços, nossas pernas, cada músculo nosso apodrece. Podemos não morrer amanhã, mas milhares de células nossas morrerão, e não poderemos fazer nada. Nada? Nada. A luz não é constante. Ela varia. Às vezes as nuvens obstruem o sol. Às vezes faz frio. Às vezes venta. Será que venta? Nós não comemos, não nos movemos, apenas dormimos e acordamos, e dói, e coça. Nosso corpo apodrece. Não o usamos para o que deveria ser usado, não exploramos nosso mundo, somos animais bilateralmente simétricos que não dão uso à sua 'ponta que chega antes'... Será que usamos roupas? Se usarmos roupas, elas machucarão ainda mais nossa pele, e apodrecerão junto conosco, fedendo. Ficaremos com nojo das nossas roupas. Teremos nojo de nós mesmos. Se não usarmos roupas, por outro lado, morreremos no frio e no vento. Somos absurdamente frágeis. Aquele que se liberta e sobrevive é mais forte que o resto de nós. Mas ele morre. Todos morremos. A morte é programada e inexorável. Apenas nossos gametas são imortais. A imortalidade é o grande objetivo. Para cumprir nosso objetivo, temos de morrer.

Para quê fazer sentido se o mundo não faz sentido?
Aparentemente a morte é uma estratégia da vida. Uma forma de proteger a vida. Nós somos um complexo formigueiro. Cada um de nós é formado por inúmeros seres vivos semelhantes e diferentes, mortais, limitados, dependentes e estéreis. Todas essas células servem apenas para proteger e nutrir e produzir um tipo único de célula, a raínha do formigueiro, ou seja, um gameta. Tão simples, não? A mesma lógica da existência de gays, de eunucos, e outros indivíduos que se excluem do tal do pool gênico. Tudo muito simples. Biologia faz tudo parecer muito simples.

Filosofia, não. Nem História, nem qualquer tipo de Arte.
As formigas não têm consciência do Eu. Apenas do Nós. Elas não têm muita consciência do indivíduo, provavelmente não têm a noção da unidade. Números não devem estar em acordo com suas cabecinhas diminutas e suas mandíbulas quase tão pequenas quanto suas cabeças. Não sei o que posso ou não posso falar disto. Imagino que uma formiga não saiba se identificar. Ela sabe qual a sua função, e a quem ela serve. "Eu sirvo apenas para proteger, sustentar e engrandecer minha rainha, e portanto meu formigueiro". Será que a formiga sabe que está protegendo suas irmãs porque têm 75% de parentesco com elas? Formigas são bichinhos haplóides-diplóides. Isso significa que a Seleção age basicamente nos machos, como com as abelhas. A abelha-rainha propõe os mais terríveis desafios para seus pretendentes, e a maioria deles morre tendo sido totalmente inútil durante sua vida curtíssima. Quase como os prícipes da maior torre do Discworld, se você já leu o livro. Os dragões existem apenas se alguém acreditar neles. O tempo fica confuso quando se morre. Morrer é inexorável. O que acontece quando se morre? Os olhos se gosmificam. A pele perde a elasticidade, antes de ser devorada. Os cabelos crescem um centímetro por ano. Com um pouco de muita sorte você pode até virar petróleo. Veneno. Será que a formiga sabe que petróleo mata quando se bebe? E que ela pode virar petróleo? Claro, não será ela, duvido que a formiga considere que ela exista depois da morte. A formiga não é um número. Talvez esteja mais próxima de um som. Aliás, são todas iguais. Será? A formiga não deve pensar, mas o quê será que ela sabe? Existe um limite de conhecimento. Mas os físicos inventaram o átomo.

É interessante o conceito de inventa aquilo que não se sabe. Os maiores gênios em toda a História da Ciência foram os que fizeram isso. Você acredita em Inércia? Difícil não acreditar. Mas não deixa de ser uma invenção. Assim como a tal da reação. A gravidade também. Você acredita em movimento? É tudo completamente absurdo. Os elétrons passeiam em planos esféricos a uma distância medida em unidade de energia do núcleo, que, aliás, existe graças a uma força Forte que também só vale para este caso. São as coisas estranhas nas quais acreditamos sem querer, querendo. Ou não. Tanto faz. Tantúfaz.

É quase viciante falar coisas sem sentido. É realmente delicioso. Vou falar que você usa drogas e diz coisas sem sentido. E daí? Acho que nunca me ofereceram drogas fora da família. Fora alguns drinks, vinhos e tequilas que eu nunca bebi de qualquer forma. Mas isso também nõ tem a menor importância.
Alguém um dia se revoltou contra essa necessidade de sentido das coisas. Mas não adiantou nada. O problema é que, quando se fala muita coisa sem sentido, as coisas começam a perder o sentido. Você perde o ponto, perde o significado total do que está dizendo. Não tem onde pisar, corta o próprio cipó e não sabe para qual pular, até se esborrachar no chão. Não dá para viver no chão; lá só tem cobra. Onça. Jaguatirica. Eu teria medo. Quem ama fere, quem odeia repudia. Quem não sabe não sabe e ainda proíbe o saber. Mas eu quero saber.

É que as certezas estão todas distantes demais.
Aliás quase todas. Quase quase todas.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home