14.9.04

Sôbre Corcéis e Carcaças

[ou cocheiros, ou carroças, mas a essa altura isso já não importa. Ainda.]

As palavras são sempre intencionais. O falar é intencional. A palavra inventada foi inventada, toda a palavra descoberta foi inventada com a intenção de ter um significado. Os significados das palavras são sempre intencionais. Sempre. Palavra não se diz por acaso, não existe "saiu sem querer", nunca ouvi falar de pensar alto (mas já achei que tinha dito muitas coisas). Não falar às vezes pode ser por acaso. Mas o silêncio (eternamente, a versão sonora das trevas), o silêncio cála e não é palavra. O silêncio quer dizer muita coisa mas no final não diz nada. Porque pode dizer tudo, e qualquer coisa. O silêncio é um grande poço vazio. A única luz é reflexo da Lua, que, aliás, é reflexo do Sol. O Sol é uma coisa viva: as explosões nucleares são iguais a explosões amebares. Dessa forma, o Sol é a origem da vida. Só que isso é uma grande corrupção da realidade, e dos meus pensamentos. Afinal, o que é vida?
Palavras são como uma flecha, elas têm mira. Eu as lambo antes de lançá-las. Suas penas, penas fazem cócegas, mas eu não tenho cócegas na língua, então elas voam certeiras e quase sempre erram o alvo. Mas as palavras não são uma ciência exata. Elas se inventam e reinventam, recriando uma rede pessoal de amortecimento, compreendendo a realidade, recipiendo a vontade do significado de chegar intato ao seu destino, contendo o desejo da mente de se comunicar diretamente com outras mentes, quem sabe não usariam o mesmo código? E nisso as palavras extravasam e remodelam o núcleo invisível da fala e da escrita, destruindo a intenção do palavrear.
Mas as palavras são sempre intencionais. Pode ser que o significado se corrompa entre uma mente e outra, ou que, no eco redundante dos pensamentos das linhas inferiores, a mente perceba, tarde demais, que foram as palavras erradas. Palavras servem, como quase tudo no mundo, para causar reações definidas nos receptores. Mesmo que quase sempre a reação não seja exatamente a esperada, chegando mesmo a ser o oposto dela (por uma questão de mudanças nos códigos), a intenção do palavrear é pura, ideal, e absolutamente incognocível. Pensar nesse significado, por si só é absurdo. Mas existe. A palavra nunca é um acidente.

Mas os gestos sim. Os gestos não são controlados. Os gestos, diferentes das palavras, ocorrem livres, incontidos, ou pensados, pois são frutos não só da mente mas da medula, duma carne que é irracional, buscando prazer, segurança, num certo desespero que nos desespera em seguida. Torna-nos incapazes de compreender nossa própria situação. A grande diferença entre o gesto e a palavra é que a palavra é sempre algo racional. Mas o gesto, sípido e selvagem, pode ser o fruto virgem dum impulso que entra no fundo do corpo, penetra na carne, que é fraca, e causa uma explosão que cocheiro nenhum no mundo é totalmente capaz de conter. O gesto, como a palavra, pode ser errôneo, condenável, e além disso ainda pode ser impensado, involuntário até. O gesto, o desejo físico de gestuar formiga nos músculos que contemos com toda a força de nossas consciências, mas o desejo do gesto, como não poderia haver o desejo da palavra.
Pois a palavra, a palavra é a corrupção do berro, é a contenção do urro, é a deturpação do puro. A palavra? A palavra é a tradução do intraduzível, é a escultura de um pássaro, é a fotografia do livre. A palavra é o agrilhoar do pensamento; as linhas escritas são as margens dos rios dos devaneios. Palavrear é transpôr a vida para a arte!

"A arte não reproduz o visível, mas torna visível."

Por isso mesmo, não acho que observar com atenção as palavras utilizadas pelo escritor vai nos dar a maior compreensão do texto: pois o real significado está muito além das palavras.
O gesto é, também, uma forma de escapar das palavras. Converter o pensamento num olhar, num rosnado, num abraço, um beijo, um pulo, uma dança. O cantarolar já é algo muito mais sublime: pois, como o gesto, não tem o problema maior da linguagem convencionada, mas, como a palavra, não tem limites no espaço (não que a linguagem gestual não tenha suas convenções, mas pode haver comunicação sem elas, o que não acontece na linguagem falada).

O pensamento nunca aparece numa forma pura: tem sempre que ser convertido em imagem, em som, em movimento, em objeto; pois nos comunicamos pelo meio físico, recebemos os pensamentos dos outros com nosso corpo animal. Talvez, se pudéssemos transmitir nossos pensamentos diretamente uns aos outros, pudéssemos então compreender realmente as idéias e a mente humanas. Ou talvez apenas ficássemos loucos...

Mas, eu estava lembrando, não era sobre isso que eu queria falar.
Era sobre o gesto. O gesto involuntário, que escapou ao controle do côche e fez o que queria. O gesto violento, puro, impulsivo. O Impulso.
O Impulso não tem nome, não tem coração. Ele é feito de carne, de sangue, e de um bolo de sentimentos que não distingüe amigos de inimigos, nem amantes de irmãos. O Impulso é sempre virgem, sempre filhote, sempre inconseqüente. Os significados múltiplos do Impulso não podem ser convertidos em palavras, simplesmente porque não são compreensíveis. O Impulso é filho do lapso, do sono, do desespero, do desejo.
Já sentiu, numa hora qualquer, que fez um movimento sem querer, um movimento que normalmente você não faria? Um gesto que significaria algo inconcebível, qualquer coisa que você não poderia decidir por fazer?
Eu já, e muito. Totalmente irracional, o Impulso é algo sem fronteiras.

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