26.5.05

Travessia

- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga:é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.
O sertão é do tamanho do mundo, e se Deus vier que venha armado. Também a alma tem seus jagunços pra guerrear pr’eternamente, enfrentando quem que vier não importa donde não importa se mais forte ou mais fraco, mas tem também suas moças de fazenda com quem se casamos, tem também suas prostitutas com quem temos prazer, tem as mães das prostitutas para as lembranças caseiras, e as jagunças disfarçadas que é pra gente se neblinar de paixão, obnubilantemente, e tem os meninos Reinaldos pra nos enfeitiçar com seu valor e coragem, e tem o diabo na rua, no meio do redemunho, e tem os doutor que passeiam pelo sertão pra conhecer e cuidar das gentes. Que se Deus vier, que venha armado. Esses e outros inúmeros são os defensores da terrenidade do in-sertão de todos nós, que afirmam e reafirmam o nosso direito de viver e matar, se fôr.
Vida humana é travessia terminável do sertão. O sertão é do tamanho do mundo, mas é também um sem-tamanho, um sem-concretude, o sertão é transcendental. O sertão é e não é acidental, que o que acontece é ao acaso, mas se explica com sol, poeira e paixões. O sertão é o andar transtemporalmente, atrás dos bandos dos hermógenes, que pra vez em quando travar batalha de morrer gente e muita e depois dispersar. Que é pra encontrar de novo guerreiramente numa casa escondida de mato ou num desfiladeiro armadilhoso de sertão desértico árido. E lutar ao lado de jagunços nobres bons, dos valentes, e de Diadorim. Vida humana é travessia, mas de Diadorim precisa-se parar pra falar, parar e olhar pro céu da noite, que esse não é do sertão, é do além-mar.
Mas quando Diadorim morre, e aí?
A gente então se estabelece em fazenda grande herdada, com compadre e esposa familiarmente, só pra contar histórias de travessias até vir o momento de terminá-las nas velhices do homem e da mulher, que elas seguirão com os doutores, que a gente gente igual às outras vamos agora pra terra seca, do debaixo do sertão-vida.
Do demo, não gloso. Que o diabo, assim fora, cidadão, não o há. Existe é homem humano. Travessia.







A viagem é pelas veredas. Veredas-caminhos. Onde não há veredas, é sertão-solto-livre. E aí? Eu, dia 28.01: “Porque o pensamento cartesiano faz-nos crer que o espaço é mapeável, contínuo, que depois daqui tem o que vem depois daqui, tem o ali ou whatever. Mas não. Saibam, meus leitores, que só existem nossos caminhos. E se saímos de um caminho para procurar um atalho, ou mesmo só para andar até logo ali (onde podemos estar vendo um outro caminho, ou um canteiro de crisântemos), nos perdemos, não importa se demos dois mil e quatro passos ou apenas um, pequenino. Porque só existem os nossos caminhos. Entre eles, não há espaço ou tempo. Há apenas as adimensionalidades da existência.// Sair do caminho reto é perder-se. Perdição.” Enveredar-se é seguro segredo. Sair do caminho reto é sedução. Mas sedução das humanas, que o demo a gente encontra é à meia noite na encruzilhada, que é encontro de duas veredas, e portanto o demo está mesmo no caminho dos homens comuns andantes viventes de travessia sertaneja, e inevitavelmente aparece cedo ou tarde pra nos desenveredar. O sertão é do tamanho do mundo. O sertão é aqui, ó, apontante pro íntimo de um eu ser.

...!...

Colocada em livro e prosa, a travessia até que parece pequena; e mesmo se o livro tiver as seiscentas medrontadoras páginas. Mas quantas centenas de meias dúzias de páginas dariam um só momento de uma só parada ou andada da viagem pelo grande sertão? Assim, se contada bem detalhadamente, com cada pensamento relatado e explicado em língua de gente falada e não pensada, com cada gesto mostrado e adjetivado pra embelezamento das movimentações heróicas. Aí depende do escrevente.
Eu consigo tirar aí algumas páginas bulóguicas de situações mesmo tão parecidas que quase que são uma só, de quase um ano tão homogêneo que quase que é – e talvez seja mesmo mesmo – só uma parada na travessia. Se me ou te ou lhe adianta, saber-se-á depois do fim do mundo, quando nada mais se souber. Mas por enquanto fica aqui esse documento, como acidente provocado por movimentos inexplicáveis de minhas mãos erradas. Foi sem querer, foi, sempre posso dizer no tribunal.
O tribunal: com Dêus dum lado, o Demónio do outro, e no meio, de juiz, acho que ninguém, mas se alguém houver será um desses menininhos mais sertões africanos que morrem subnutridos com nem ver a lua mudar de fase no céu, que só esses têm o direito de julgar quem quer que seja, inclusive os dois avogados. E que vai decidir pr’onde vou eu: não só dicotomicamente, que ainda pode ter outros infernos e outros céus, de Dante ou de Platão, ou de Godard. Mas purgatório é um só pra todo mundo, seja mundo ou seja montanha ou seja nada não, sempre um mesmo pra todo mundo.

E pra que a travessia?
O sertão, com o passar do tempo pensado, vai virando tudo a mesma massa cinza náuseica, a mesma matéria constitui tudo no mundo árido, porque tudo é a mesma matemática tautológica: ter certeza, isso tem, mas nada diz, sentido não tem. Só se sabe que é, mas é sem objeto direto, é mas é nada. Pois que sentido valoroso de existência teria de estar fora do mundo, e o sertão é infinito-travessia.
E pois que sem Diadorim o sertão é tudo sem sentido. E pois que Diadorim já nem existe, virou outra coisa que não é a coisa pela qual se apaixonou, e acabou assim a paixão, dissipou-se a neblina, baixou a água que inundava a margem impedindo a passagem, diminuiu-se o Rio da Fome violento, assentou a poeira que doía os olhos abertos. E só. E só.

- Eê, boi-vaca!
Travessia também pode ser pra levar a boiada pro arraial, da fazenda, pra fazer negócio e obedecer o chefe. Pode ser pra contar-se histórias narradas bonitamente, que saber narrar é o maior valor que pode existir, e a gente deve de sentar na frente do contador ou pelo menos sentir que sentou, já que nem sempre podemos fazer pausa na travessia à cavalo. E ouvir suspensamente, suspenso o tempo e o sentimento de ser-para-a-morte.
Sagn pára até a travessia e seu fim. Rana.

Minha travessia faço em cavalo-eu, eu e cavalo centaurizamos tòtemmente. Minha montaria sou eu, metade de mim me leva pela vida no sertão árido. O centauro acostumado que sempre foi aos bosques helênicos tem de agüentar o deserto das Gerais. Que assim é existir, e se quiser existir tem de agüentar, e se Deus vier que venha armado. Armado e montado em belo cavalo branco-e-preto como um negativo de zebra-africana. Deus com cabelos avoantes e louros no céu sertanejo virá, para marchar pela avenida Paulista numa Marcha Evangélica e dois dias depois na Parada Gay. E depois pra ir matar um negro no sul da America, e para matar um carreiro maldoso por meio dos bois boiada travesseiros. Deus avogado do Diabo descendo à terra armado pra fazer justiça, acaba sendo morto por um jagunço enraivecido com tudo e o mundo. E o jagunço não, não passa a ser Deus. Mas passa a ser livre. Ou talvez seja mero acidente. Ofegância.

Na travessia seriosa, não se pode gastar energias comidas sendo politicamente correto. Se tem de matar, mata. A gente se esconde no apartamento de trás pra conseguir o elemento surpresa. Daí a gente se arma, carrega a arma, e vai e atira, mesmo sendo um contra vinte. A gente morre, mas mata alguns. E se precisar prender outro e matar sem dar a ele chance de reagir, matamos. E enquanto matamos vemos luz branca nos invadir e ao mundo.
Se a democracia escolhe um líder tirano, eu vou lá e mato ele, e me sinto um herói. E a Anabê concorda.
Terrorismo = Revolução.

1 Comentários:

Blogger miriamics disse...

Vcs postam muito comprido e, as vezes, tenho tempo de ler. Hoje não.
Tutu, vc foi pra lá de ótimo na festa (é sempre, mas lá eu me impressionei) ;o))
Só vim aqui pra dizer isto. Por ora... Depois eu leio.

15/6/05 11:04  

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