16.7.06

Obsessões

A prova de que Deus não existe é a total ausência de Misericórdia. Tudo o mais eu entendo: livre-arbítrio, existência do mal, absurdidade, silêncio, e até a irritante mania de julgar os outros. Mas se Deus existisse, eu já teria morrido, por um acidente de trânsito ou bala perdida, ou alguma doença misteriosa. Nem digo que eu teria morrido em paz, talvez tivesse doído muito. Mas de certa forma é como cavalos que quebram a perna: não é legal, mas você tem que matá-lo, é seu dever, como ser superior. E você o faz. Então por que eu continuo vivo? A prova de que Deus não existe é que a dor não mata ninguém (de dor eu já morri mil vezes mil vezes, cada uma delas terrível – e é isso que eu chamo de inexistência do inagüentável).

Não que eu não queira viver – há, aí está o nó. Eu quero viver. Mas o cavalo também queria, provavelmente.

De certa forma, se você quer julgar uma pessoa, só há dois critérios possíveis. E são eles os dois fatores mais importantes de toda a existência humana, então quem tem uma memória fraca talvez queira tomar nota. São eles o gosto e a vontade de viver.

O gosto de viver de certa forma é o que nós costumamos chamar de “felicidade”. E é aí que entra a obsessão. Geralmente as pessoas não param pra pensar muito nisso, ou se param isso nunca entra em discussão; eu até diria que a felicidade é o maior dos tabus (uau, frase de impacto, talvez essa seja minha primeira grande frase, talvez um dia ela apareça entre parênteses na “Wikiquote” ou na caixinha da Marina, então quem sabe não é esse um momento histórico, apanhem as câmaras fotográficas). Ao descrever uma pessoa – e isso vai do cotidiano ao científico, passando pelas minhas aulas de Improvisação: A Palavra em que temos de descrever as personagens que inventamos – ao descrever alguém, eu ia dizendo, sempre falamos características específicas e modos de se relacionar com o mundo e subjeitvismos e objetividades e manias e vícios e até os menores detalhes (e a gente acha que está fazendo poesia...), mas normalmente temos vergonha de dizer o essencial: se essa pessoa é feliz ou não. Tudo o mais é contingente, é ruído, entendem? O que importa é se essa pessoa ama sua vida ou não. Já eu, embora tenha vergonha de demonstrar em público (que tipo de esquisito se preocupa com isso?), sou obcecado pela felicidade. Ao olhar alguém, quem quer que seja, desde meus amigos íntimos até os desconhecidos do ônibus, e mais além os desconhecidos do jornal, e mais além os desconhecidos de minha imaginação, e mais além os desconhecidos que eu sequer imagino mas existem simplesmente pelo fato de participarem de minha obsessão, ao vê-los eu só consigo pensar Se Essa Pessoa É Feliz. Ao pensar nos problemas sociais eu estou pouco me fodendo para a chamada moralidade, eu me importo se alguém pode ser feliz como a merda de nossa sociedade. Ao pensar nos problemas culturais eu me pergunto se alguém pode ser feliz sendo a privada de nossa sociedade. Ao pensar sobre os problemas metafísicos eu me pergunto se alguém pode ser feliz; ao pensar sobre os problemas pessoais eu me pergunto se esse alguém é feliz. E, no fim das contas, eu admito que minha preocupação seja com a minha felicidade. Já não sinto que tenho forças pra não ser egoísta...

A vontade de viver está em muitas pessoas, é algo tão primal que poucos podem escapar, está até em mim. Quando se perde isso (e eu já cheguei tão perto...), não há mais volta, eu acho. Não que implique no suicídio – o suicídio exige, na verdade, uma vontade de morrer, que só pode existir quando se acredita em algo bom (a felicidade, necessariamente, pois é sempre ela que a gente busca, a todo instante) que advirá com nossa morte. Querer viver é nosso último grande impulso. Mesmo assim, o suicídio é outra obsessão que eu tenho (Mishima – escritor japonês do século XX que cometeu o hara-kiri – disse que o suicídio é a masturbação suprema).

E, é claro, há você. Amor, paixão, obsessão. Tudo rima (como romã rima com travesseiro...). Eu poderia, você sabe, eu poderia esperar por você minha vida inteira. Eu poderia manter minha vida por anos até a velhice sem qualquer felicidade, somente com alguns prazeres contingentes, esperando que você mudasse de idéia. Porque você diz, você age, você vive como se realmente jamais fosse me amar. Mas o que me mantém vivo é que você tem tanto poder sobre isso quanto eu. E um dia você vai ter de me amar, porque eventualmente vai ser impossível cair mais...

... Ou não. A Ana B. falava que para voltar à superfície, é preciso atingir o fundo do poço – assim usamos o impulso que o chão nos dá para ir à tona. Mas alguns lagos não têm fundo – e há anos eu caio, caio eternamente.

E algumas pessoas ficam bravas comigo porque eu não me entusiasmo...

E algumas pessoas me julgam por querer morrer...

Que vão tomar no cu todos esses. Isso inclui muita gente que sabe quem é. Inclui todas as pessoas que dizem que eu preciso fazer alguma coisa mas não me dizem o que. Que dizem que eu preciso esquecer, mas isso não é algo que eu possa fazer. Que dizem que eu tenho de pensar de um modo ou de outro mas sabem o quê eu não controlo meus pensamentos, a liberdade tem um limite até para os existencialistas (aliás, viu, ser existencialista é uma merda, porque aquilo que eu falei antes sobre ver felicidade no suicídio fica praticamente impossível, e eu realmente gostaria de conseguir me suicidar, mas eu tenho medo e não vejo esperança nenhuma mesmo ali). As pessoas que dizem que eu não mereço isso ou que não vale a pena ou que é idiotice, fodam-se, idiotas são vocês, idiotas insensíveis egocêntricos que querem mais é sentir que fizeram sua parte acalentando o coleguinha, mas o coleguinha infelizmente é mais inteligente que vocês (sabe, não é educado falar que eu sou mais inteligente que vocês, mas eu sou – e isso não me deixa convencido porque inteligência não serve pra porra nenhuma, aliás não vou fechar esse parênteses porque quero falar mais sobre isso.

A gente vive acreditando que crescer é bom. Nosso grande valor é a educação. Nosso ideal é uma sociedade melhor, mais humana, mais justa, uma vida mais digna e uma existência mais autêntica – e por falar em existência autêntica coloco aqui um asterisco porque me lembrou de algo: * – queremos mais sabedoria e mais tranqüilidade, mais aventura e mais segurança. Queremos nos tornar adultos para virarmos seres humanos de verdade, e então queremos retomar nossa infância para virarmos seres humanos maiores. Vamos à escola, à faculdade, pós-graduação, e quando acaba dizemos, humildes e de coração quente: “Nunca acaba, sempre precisamos aprender mais”. Crescer mais, nos transcender em direção ao infinito (e não é isso mesmo a base do existencialismo que eu defendo?). Mas sabem o quê? Crescer nem sempre é bom. Quando eu digo que eu sou miseravelmente infeliz e que não vejo possibilidade de saída de minha condição, as pessoas me dizem que com isso eu estou crescendo e que quando for feliz serei muito mais feliz do que a maioria das outras pessoas, porque eu cresci. E é verdade, eu cresço, eu venho crescendo ininterruptamente há anos, e não me levou a nada. Quero o direito de ser minúsculo, vocês estão me ouvindo? Quero ser pequeno, meu tamanho basta, BASTA! Não tenho pretensões ao sideral. Quero caber dentro das paredes da minha vida. Mas tudo me obriga a crescer: a dor, o espaço, a distância, eu mesmo. Até o dia em que serei um gigante. Vazio.
Uma amiga minha de Campinas me disse que acha que eu vou ser uma das pessoas que vão parar de voltar pra São Paulo todos os fins de semana. E eu não quero isso, mas também acho, porque eu estou crescendo.

Retomando o asterisco: *. Sabe, eu nunca vou desistir de te conquistar, então eu vou dizer mais uma coisa, e se não servir pra isso quem sabe não te faz algum bem (porque se existe alguém na Terra que eu genuinamente quero que seja feliz esse alguém é você). Eu entendi que pra mim não é que você tenha beleza, ou inteligência, ou senso de humor, ou sensibilidade, ou sabedoria, ou calor, ou carinho, ou honra, ou percepção, ou tato, ou Graça, ou dedicação, ou extroversão, ou introversão, ou um sorriso maravilhoso. Você tem, sim, todas essas coisas, beleza inteligência senso de humor sensibilidade sabedoria calor carinho honra percepção tato Graça dedicação extroversão introversão um sorriso maravilhoso, e muito muito mais, de modo que isso já bastaria para eu ver você e sentir meu coração bater mais forte. Mas o que faz meu coração parar de bater quando eu te vejo, o que faz eu perder o controle e fazer coisas ridículas, o que faz eu ser patético e estereotípico, o que faz eu me reconhecer em todas as canções de amor inclusive as sertanejas, o que faz eu chorar por horas seguidas e às vezes por dias inteiros sem parar pensando em você, o que faz eu ter certeza de que poderia te esperar até completar cem anos e ter problemas de saúde demais para viver uma grande paixão, o que fez eu deixar de me importar com o que qualquer pessoa do mundo pensa, o que me fez parar de escrever em cada prova que eu fiz no vestibular pra pensar em você, o que me fez me desconcentrar por duas vezes ao te ver do palco me assistindo, o que faz eu escrever essa declaração boba e cheia de clichês, o que faz eu conseguir rir diante da maior das dores, o que faz eu saber quem eu sou depois de horas sentindo sua falta esmagando meus pulmões, o que faz eu saber que existe uma possibilidade de felicidade, o que faz eu saber que a vida pode ser como a gente sempre sonhou, o que faz eu acreditar em todas as bobagens que vêm me falando sobre o amor desde que eu nasci, o que faz eu ter vontade de chorar vendo os piores filmes comerciais, o que faz eu quase acreditar no destino e no sobrenatural, o que faz ser mais importante eu guardar e expressar esse amor do que viver ou estudar ou ser o que quer que seja que um dia eu quis ser, o que faz eu entender e aceitar que por você eu desistiria das artes cênicas e de Campinas e do que quer que eu precisasse desistir, o que faz eu querer te ver só pra sofrer mais um pouquinho é que você é você. “O que adoro em ti lastima-me e consola-me/ O que eu adoro em ti é a vida”. O melhor dia da minha vida eu passei com você, a melhor noite da minha vida eu passei com você, o melhor momento da minha vida eu passei com você, o melhor abraço da minha vida foi seu e o melhor sonho da minha vida foi com você, e a você eu dediquei meu pior pesadelo e meu pior dia e minha pior noite, tudo o que já houve de bom e ruim em mim. E quando eu digo isso – que não é senão um fragmento insignificante do que eu gostaria de saber dizer – as pessoas me dizem que eu estou vendo as coisas errado. E só queria que você entendesse que é mentira, que eu vejo certo, que é isso mesmo... você é, me amando ou não, minha única salvação, e o mais próximo de Deus que eu jamais chegarei.

P.S.: É como disse um grande poeta... Não lembro se foi Pessoa ou talvez Bocage... :
Tenho um coração com buraquinhos,
e não posso me curar;
se estás morrendo aos pouquinhos,
com cada dor se morre mais.

2 Comentários:

Blogger yuribt disse...

Será que se eu dissesse qualquer coisa aqui você se importaria?
Inteligência não garante uma visão de mundo que se aproxime da Realidade...

16/7/06 10:38  
Blogger Artur disse...

eu nunca disse que garantia

nem uma visão de mundo que se aproxime da realidade garante uma visão de mundo que se aproxime da realidade.

16/7/06 16:05  

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