16.7.04

sem título

- grito -
Por que eu grito?
- grito -
Risada.
 
 
 
Você sabe qual é a única coisa que um ser humano quer fazer? É a única coisa que ele pode conseguir. A gente só sabe gritar. Porque olha: ! Os prédios, as paredes, tudo tá em silêncio, tudo que o homem faz e é fica em silêncio, e o que não é do homem não sabe nem pode gritar, opaco pra si. - sirene de ambulância, buzina de carro, canto de pneus, toda essa merda - Ouve o silêncio, o homem se nadifica, o homem só pode gritar e fica em silêncio, que porra é essa? Por que eu grito? O grito acaba em alguns segundos, talvez ainda haja um eco, mas tudo volta ao silêncio das buzinas sirenes cantos -. E você viu o grito, tá aí, nessa máquina, enrolado numa fita de vídeo, e se você não mostrar ele não terá acontecido, se a porra do seu filme não for exibido eu nunca vou ter gritado. Meu grito escorre pela avenida paulista, - mais devagar do que eu ando por ela -. Eles ouviram, eles: prédios, semáforos, as listras brancas, filma elas pra ilustrar! Mas daqui a alguns minutos, um sexto de hora ou qualquer coisa, ele chega até o vão do masp, e se interditassem a avenida rápido o suficiente meu grito ficaria preso aqui pra sempre, e fim, mas quem pode fechar a avenida paulista? E ele começa a subir, e cachoeira pra nove de julho, de lá pega um ônibus, meu grito, meu. Meu grito nas bancas: compre 1 g-magazine e leve outra grátis. Entro gritando, com seis reais compro um livro da Florbela Espanca/A Mensageria das Violetas/Antologia/Seleção e edição de Sergio Faraco/Florbela Espanca (1894-1930), ignorada pe-/la preconceituosa crítica do início do século, é con-/siderada hoje em dia a mais sublime voz feminina/da poesia portuguesa de todos os tempos. Seus sonetos são um ousado diário íntimo, onde palpitam as ânsias de uma mulher ardente, a clamar – desco degraus lendo – pe-las carícias de um amor impossível. O caudal dessa insatisfação veio desembocar na trágica madrugada de seu 36° aniversário, quando a bela e carnal alentejana se calou para sempre, após uma dose excessiva de Veronal. Entro numa rua que cruza a avenida, deixo para trás meu grito escorrente, mas ele vem me seguindo e eu grito mais: se calou para sempre! Meu grito tá nas bancas, e não só na bosta do livro da Florbela Espanca, tá na G-Magazine, na Playboy, nos dvds, se calou para sempre o caralho, tá aqui na minha mão o grito – Sombrios mensageiros das violetas,/De longas e revoltas cabeleiras;/Brancos, sois o casto olhar das virgens,/Pálidas que ao luar, sonham nas eiras. Prestou atenção? Prestou? Sei que não. Gravou aí na porra da sua fitinha e mais tarde presta, ou finge que presta, se fôr vira silêncio. Se calou para sempre após uma excessiva dose de Veronal. Verona, Romeu e Julieta, - grito -, dose. Esse aqui é o grito do frei louco, insano. Eu estou maluco, sim, estou, não podia estar quadrado, careta. Mas como ser maluco tanto assim como você? Cazuza, veronal com uma agulha porca com hiv, lama, merda. Surtar quando vê Cazuza. Ouvir Cazuza dentro da cabeça enquanto anda pela avenida paulista, seus afluentes -. Paro, tua câmera dá a volta, continuo andando, tu me filma pela frente. Tu já deu o cú? Já tomou no cú? Tomar no cú é causa certa de grito. Porque você ainda não entendeu que eu não tô falando de grito filosófico, psicológico, bosta nenhuma, não tô falando de arte, falo de grito de verdade. Tomar no cú, ser espancado com um pedaço de pau, enfiar um gilete no seu pulso. Grito urro. Não me convidaram pr’essa festa pobre que os homens armaram pra me convencer. Grito não vem lendo Sartre, Nietzsche, Kierkegaard, Wittgenstein, tomar no cú, Marieta Severo, túnel carioca. Enquanto houver burguesia, não vai haver poesia. - O rapaz alisa as pernas com frio, estou naquela pracinha sem graça, ele é gay? -. Tôca, tôca, tôca. Se jogar do primeiro andar, que é pra não morrer, não desmaiar, quebrar braços e pernas e o mais. Aqui a nove de julho, jogar-me, não à Marina, pular e cair com o peito no teto dum carro, costelas, sangue no pulmão, hemoptise com grito e não silêncio. Parar por um segundo o silêncio do ir e vir dos veículos com canteiros no meio. A burguesia fede, a burguesia quer ficar rica. Porra, queira gritar. Você me filma porque você não tem bolas pra gritar também. Você corta cenas, cortará essa, eu censurado. Aquele cara bebe algo. As ilusões tão todas perdidas. Sonhos vendidos, tão barato que Ele nem acredita. Mudar o mundo, frequenta agora as festas.
          Meus heróis morreram de overdose. Meus inimigos estão no poder. Ideologia. Cazuza. Ideologia. No poder. Mudar o mundo, queria mudar o mundo. Tesão agora é risco de vida. Não tem nenhum rock’n’roll. Vou pagar a conta do analista pra nunca mais ter que saber quem eu sou: aquele garoto queria mudar o mundo. Assiste a tudo em cima do muro. Ideologia pra viver, ideologia do silêncio, tudo o mesmo. A porra da rua quebrada. Dias sim, dias não, vou sobrevivendo sem um arranhão – da caridade de quem me detesta. Ódio, odeia, sim, caralho. Antes sinto – um dia vi – agora sinto não sentir tudo o que poderia sentir – e não sei acabar o verso. Um dia senti-me mal, e não entendi que isso era algo mais que ordinário, e caí na tentação de acreditar que poderia estar pior. Poderia. E senti-me mal sentindo-me melhor que o antes-mal, e cri que era bom o mal que não conhecia por conhecer o mal pior. O bem não é o não mal, o bem é algo de verdade que existe e que eu não sei achar porque um dia eu cri que o mal era o bem e perdi a vontade-capacidade de ver o que era bom e o que era mal, e o mal virou verdade e o bem virou idílio, e o idílio virou algo que não deveria ser buscado por não ser real mas apenas uma vontade boba que logo passaria e não passou e agora eu vejo o mal e não sei onde me esconder o mal está dentro e eu tento ir para fora, ando pelo jardim pela grama molhada da chuva mas parou de chover o mal não tem medo de água e me segue e continua aqui e eu não posso fugir ele está dentro e fora ele cobre a minha pele ele anda com suas patas líquidas que deslizam pelo caminho sem que faça nenhum barulho e eu não posso ouvir e ele vem por trás e abocanha, o mal em mim, e o mal aumenta quando tem gente, gente lembra bem e eu não tenho bem, e eu esqueço que o mal não é o não bem e acho que é então creio que estar perto deles aumenta meu mal e eu não sei não sei não sei que é mentira que estar longe deles aumenta meu mal meu mal me armadilha e se potencializa e vira um monstro enorme que eu não sei achar porque eu estou imerso num sentir que é só uma coisa porque eu não sei como seria sentir algo mais como o quê? No vai-vem dos teus quadris. Só pra exercitar. Me dê de presente. Por favor, caralho. Grito, choro.
          Dizem que não posso odiar todos. Todo mundo. Temos medo de odiar tanto. O ouvido sangra ao ouvir tanto ódio, finge que não pode existir, que é impossível. A maneira mais fácil de odiar é ser odiado. Sintimo-nos odiados e logo odiamos, não há outra opção, é certo. O ódio é o quê? Não é o não-amor, não é o desamor, é o anti-sim. Anti-sim, odeio o mundo, todo ele, todos eles, você que me filma. O amor é algo desprezível. O homem tem o nada dentro de si e tenta preencher com tudo o que vê pela frente, mas não é possível. A solidão não tem remédio, um dia senti-me só. Amor. Família, amigos, amores, deuses, putas, drogas, aids, filosofia, arte. O nada não tem dimensões, acomoda tudo, pede mais. Podemos, claro, nos enganar. Toda enganação é válida. Podemos escolher um amor terno, carinhoso, calmo, fiel, infinito enquanto dure. Podemos escolher um amor por noite, ou dois na mesma noite, ao mesmo tempo, no mesmo corpo, explodindo, dar pra todo mundo, dar, podemos, não ser de ninguém, ir pra cama com dois e sair dela com quatro, homens, mulheres, podemos ir jantar nas nossas bodas de ouro sem nosso marido, com uma puta que encontramos por aí. Podemos trancar nosso amor numa capela. Sim, o frei veronense fala loucamente coisas sãs. Isso é o grito. Me leve pra qualquer lado. Testo teu sexo com ar de professor. Faz parte do meu show. Outro parágrafo, se você quiser. Não há pontuação no seu filme. Grite. Meu tesão é risco de vida. A agulha contaminada, o sexo doente, o silêncio virulento, a morte macia, a vida excitada, o amor na cama do hospital. Palavrão, palavrão! Gilete no pulso, tomar no cú. Foda-se. Homem não chora nem por dor nem por amor. Já foram as décadas de sim. Década de anti-sim, milênio. Rosto vermelho molhado, dos olhos pra fora. Acabou a esperança, o amor, o sexo livre, a música, as drogas, inexistente. Corte a porra do E da tua camisa, estampa. Acabou a era de aquarius, acabou Woodstock, Rock in Rio, Cazuza, Hair, Beatles. Podíamos ter ido pro caminho certo. Agora vivemos a consequência de nosso passado. Somos ela, ele. Acabou a escolha, a consciência, o meta-corpo. Fim. Me avise quando for a hora. Caras tristes fingindo que a gente não existe. Interditaram a avenida paulista. Esmagaram todas as aranhas da cidade. Fechemos os olhos e calemo-nos para sempre, florbelamente. No tempo que resta, tomemos no cú.
 
Depois de assistir Cazuza. Agora leia de novo gritando o que estiver em itálico.

3 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

(É a Ágata ^^ bizarro o blogger oO)
Que texto hein?Deu vontade de gritar...apertou o coração.Estranho.

Enfim

To com saudades,beijos :)

16/7/04 19:49  
Anonymous Anônimo disse...

(eu sou o Tommy, só pra referências futuras (eu nao tenho saco de cadastrar-me, so shoot me))

oO

Que leitura mais densa... Parece que eu to lendo algo que o Marx escreveu logo depois de acertar o martelo no dedão. Bizarro oO

Mas tudo bem, surtar é bom às vezes. Se fosse eu, tinha dado um soco em alguém e deixado por isso mesmo, mas blz xP

:**

16/7/04 20:06  
Blogger Ozzer Seimsisk disse...

Porra, Marx nunca escreveria nada nem comparável.

7/5/08 16:00  

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